Este ano o economista Nildo Ouriques foi convidado pelos alunos do centro acadêmico do curso de Gestão de Tecnologia da Informação do Instituto Federal de Santa Catarina para divulgar seus estudos sobre o papel da universidade e do sistema nacional de inovação na sociedade brasileira. O professor Doutor pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) desafiou os estudantes a revisar o conceito que tinham do manejo da política de CT&I no Brasil. Seu livro ‘Crítica à razão acadêmica, uma reflexão sobre a universidade contemporânea’ e o vídeo da atividade anexo à esta reportagem expõe as fragilidades desse sistema, submetido à uma lógica desconhecida por muitos, até mesmo professores com doutorado, por mais estranho que possa parecer. A análise conjuntural do estado de coisas em que se encontra a gestão do SNI (sistema nacional de inovação) é tão devastadora quanto o parco ambiente intelectual dentro das universidades e Institutos Federais. Essas organizações não são compostas por intelectuais, são compostas por ‘acadêmicos’, segundo o autor. Acadêmicos esses que não buscam mais do que avolumar uma carteira de pontos e títulos em programas de pós-graduação que não tem a função de enriquecer a vida material da população brasileira, ao contrário, transferem inadvertidamente da periferia para o centro do sistema o conhecimento aqui preconizado sem se dar conta do mal que fazem. A tese que Nildo defende é corajosa, pois depreende-se do raciocínio que os responsáveis pelo atraso tecnológico seriam aqueles incumbidos de fazer justamente o contrário: avançar a fronteira do conhecimento e promover o progresso da ciência para alterar o lastimável quadro brasileiro. Os professores são geralmente elevados à categoria de heróis no Brasil; são 'intocáveis' neste sentido, porque seriam tudo aquilo que mais precisamos para melhorar o país, sobretudo os professores universitários. Esse consenso é desvelado no desenvolver da argumentação. Refutar com veemência o senso comum não é tarefa fácil, principalmente se for confrontar a idéia de que a educação ‘salva a pátria’, atribuída pelo palestrante à direita brasileira. Circula há muito entre os economistas que se o país continuar a exportar produtos com baixa densidade tecnológica e não atentar para o déficit do setor de tecnologia na balança comercial vai aprofundar a dependência. Se o Brasil seguir pagando royalties para os países do centro com o talento de seus próprios cientistas como adverte Ouriques, pode investir o quanto quiser em educação que o país não vai melhorar. A carga colonial ainda presente A primeira hipótese a ser defendida é a de que o colonialismo é uma marca das universidades brasileiras. A carga colonial adquirida da Europa da qual nunca nos livramos causa prejuízo ainda hoje já que o nosso sistema de ensino – mais concretamente a USP – começou para que os filhos da classe dominante paulista respondessem à revolução de 30 de Getúlio Vargas buscando fomentar um ‘liberalismo ilustrado’ (em uma perspectiva benevolente de Florestan Fernandes). Segundo Ouriques: 'Esse acadêmico é um ser colonizado, ele traz para cá como virtude aquilo que é a nossa derrota econômica e o nosso escravismo intelectual e a nossa perda de vitalidade científica'. O caso da copaíba, tirado de uma audiência do senado da república é emblemático e ilustra adequadamente a tese. 'No mundo capitalista a ciência tem fronteiras e as fronteiras chamam-se patentes.' A maior parte das publicações do óleo de copaíba é de brasileiros (cerca de 80%) e nós não temos nenhuma patente. A não observância da tese dos economistas do pensamento herético dos anos 60 (Andreas Gunder Frank, Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra, Theotônio dos Santos, Ludovico Silva, dentre outros cuja importância também é relevante) torna inábil a análise de que quanto mais se trabalha mais se aprofundam nossos problemas sociais e econômicos, uma vez que as multinacionais estão campeando no país e a CF de 1988 faz confusão entre as empresas brasileiras e as empresas estrangeiras. É uma constatação óbvia dentro da teoria da dependência que o tema da remessa de lucros é fatal para as economias nacionais, mas é olimpicamente ignorada entre o meio acadêmico em que predominam ora o velho testamento neoliberal, ora o neodesenvolvimentismo como mainstream, teorias dominantes que não dão conta de solucionar os problemas do país e apenas administram em doses homeopáticas a redução da pobreza, que se encontra em Nuestra América em quase todo lugar que os olhos alcançam. O subdesenvolvido afinal, desenvolve o desenvolvido e não há uma separação entre uns países e outros, muito ao contrário, são complementares com toda sua ambivalência e todos pertencem a um desenvolvimento ‘desigual e combinado’ que faz a roda capitalista girar. A realidade da despolitização As aulas dos Institutos Federais brasileiros e centros tecnológicos das nossas universidades são, não raro, estéreis do ponto de vista político; isso se dá em parte por herança do regime militar, ambiente em que cresceram e desenvolveram-se as nossas universidades com cerceamento da liberdade de consciência e uma imensa suspeição sobre o pensamento crítico e em parte fruto do modelo reinante em praticamente todas as universidades do mundo, com a divisão do conhecimento em disciplinas isoladas da totalidade do real que aleijam e condicionam o aluno a enxergar o mundo de forma pouco interdisciplinar, provocando em consequência alienação (uma visão de mundo em que ‘especializa-se para não entender’). Ouriques afirma que os Institutos Federais tem como valioso justamente o fato de estarem mais próximos do mundo do trabalho e da realidade brasileira em comparação com o perfil das universidades e estão à perigo de perder esta característica tão fundamental. O drama da universidade também é a sua expansão desorganizada, com um projeto mais preocupado em aumentar o número de vagas do que enfrentar o dilema da sociedade brasileira. Qual é a função da universidade afinal? É enfrentar o problema de que o país é subdesenvolvido e dependente. Se essa pergunta não está no epicentro da gestão do sistema nacional de inovação algo está errado. Como dar uma resposta ao problema da dependência científica e tecnológica no Brasil? Qual o papel que as multinacionais teriam no processo, se é que há algum reservado à elas? É difícil ver alguém com rigor crítico suficiente para questionar, malgrado qualquer avanço ocorrido, se aquele mote de universidade pública, gratuita e de qualidade é o suficiente para atender os anseios do povo brasileiro. Muitos ainda contentam-se com sua a mera presença na universidade, proibitiva há pouco tempo atrás quando o orçamento familiar não permitia adentrar na casa do saber. De fato, sugere-se na fala de Ouriques que os programas sociais seriam até bem vindos às classes dominantes, no sentido de aplacar a consciência crítica das massas e promover uma ‘digestão moral da pobreza’ que mantêm o povo fora de tudo. O contexto atual da academia A crítica ao SNI sugere que a estrutura de publicação atualmente adotada é uma esparrela, já que dá mais pontos para quem publica em uma revista internacional do que para quem publica em uma revista nacional. O Brasil pagava 280 milhões de dólares em royalties em 1994 e após o crescimento do que se chama 'produção científica', em 2014 pagamos 3 bilhões e 200 milhões de dólares anuais em royalties. Chama-se 'produção científica' a redação de um paper, nada mais. O professor aponta os desacertos do acadêmico de forma nada cordial: 'Ele vai lá na reunião do departamento e fala: ‘tem que ter estímulo para publicar e temos que ter dinheiro para comprar também’. E aí a CAPES vai lá e paga mais 280 milhões de dólares por ano para ter acesso aos bancos de dados internacionais dos quais grande parte da produção é de pequenas moléculas de verdade colocadas pelos acadêmicos da periferia sem que ele tenha domínio disso.' Este desapego pelos preceitos da economia política, presente inclusive dentre a esquerda na análise gestão do sistema nacional de inovação tem seu efeito percebido na tendência da balança comercial, iniciada assim que tomou conta da universidade brasileira o pernicioso sistema conhecido como ‘publicar ou perecer’, em que vitalidade do professor e da ICTI é dada pela quantidade de artigos que ele consegue publicar e não pelo número de pedidos de patentes registrados. A mera superioridade numérica de ensaios sobre o que quer que seja não substitui um exame qualitativo da contribuição nacional à ciência e torna um professor publicador, de nulidade a gozador de prestígio dentro das universidades: 'Na universidade brasileira os professores se transformaram em produtores de papers igual a produção de frangos da Sadia. Tem que mandar bala!', diz Ouriques. A política de CT&I nacional portanto, não está orientada pelo registro e aquisição e patentes, mas pelo número de pontos na Capes que um doutor é capaz de fazer seu departamento ganhar com a publicação de conjecturas sobre o senso comum que passam ao largo do INPI (Instituto Nacional da Propriedade Intelectual). É mais oportuno para quem não sabe dar aula esconder sua inépcia atrás do FI (fator de impacto), um compêndio dos pesquisadores mais 'frutíferos'. Cita-se autores de forma pré-acordada como quem forma um cartel nas bolsas de valores do prestígio científico para fraudar o este índice, já que não há controle (e quem tem tempo para isso?). Até que ponto essa correlação depõe decisivamente contra os dois governos do PSDB e do PT, que autorizaram e autorizam a sangria com sua complacência à essa política do BIRD? Os problemas percebidos Mas o pior de tudo não é isso. O que há de mais insidioso na condução atual do sistema nacional de inovação é que aquilo que Henry Etzkovitz chamou em meados dos anos 90 de tríplice hélice – consórcio entre empresa privada, universidades e fundações de amparo à pesquisa – esquema que no exterior é muito bem articulado quanto ao papel que cabe a cada qual, no Brasil não consegue haurir aquilo que realmente significa a fronteira do conhecimento de uma determinada técnica ou ciência, com a descontinuidade de recursos para os programas de pesquisa. É temeroso pensar que maioria dos pesquisadores brasileiros é tão inoperante que não sabe sequer que deve investigar nos bancos de patentes internacionais (WIPO) e não nas bases de dados de revistas científicas chamadas ‘internacionais’, posto que o estado da arte de uma determinada técnica pode nem estar ali. Esta é a ‘aula número um’ da metodologia da pesquisa: saber buscar o conhecimento nas fontes de conhecimento adequadas. O que se observa é que a maioria dos pesquisadores brasileiros não sabe que só fica com a ‘xepa’ da ciência desconhecendo o processo de patenteamento de uma inovação, que pode levar anos para ser inteirado e só vai para as ‘revistas internacionais’ quando já está devidamente marcado com título de propriedade e endereço certo no sistema produtivo mundial. Seria preciso uma tenacidade científica fora do comum conseguir desenvolver uma inovação tecnológica com acesso apenas às rebarbas da ciência, lendo artigos que trazem novidades com donos já registrados e defasados há anos em seu conteúdo. O pior é que nosso país está perdendo competitividade nos produtos manufaturados, uma vez que a mão de obra chinesa é imbatível principalmente do ponto de vista do custo; é preciso investir mais em atualização tecnológica nas fábricas brasileiras para obter ganhos de produtividade. O processo de desindustrialização aberta que vive o Brasil e já é admitido por economistas ligados ao governo preocupa não só pelo fato de que nossos alunos permanecerem insistentemente nos últimos lugares do Pisa (Program for International Students Assessment) já que o aumento da produtividade é um ‘subproduto’ do nível educacional da força de trabalho, mas também pela baixa taxa de investimento da economia brasileira. A despeito dos enormes esforços e ampliação do orçamento federal no ministério da educação nos últimos anos, nossa colocação nos rankings internacionais permanece insuficiente para esboçar uma reação. Países como Coréia do Sul já largaram na frente na década de 70 e produzem dispositivos com alta densidade tecnológica há décadas. Se não há um aumento da produtividade não há um aumento genuíno do salário; os industriais não são longânimes em aturar este desaforo por muito tempo (política de valorização do salário mínimo em descompasso com a divisão internacional do trabalho). O empreendedorismo pode ajudar? É ingênuo pensar que a figura do empresário vai pelo menos amainar a questão? O comportamento de um empreendedor é essencialmente diferente de um pesquisador. Uma invenção só se torna inovação quando é colocada na esfera produtiva. Enquanto a invenção não se tornar um produto 'vendável' e não houver a validação de mercado não há retorno substantivo para o país. O empreendedor transforma pesquisa em dinheiro, o inventor transforma dinheiro em pesquisa. Mais constrangimentos O alerta está lançado: está se formando nos países da periferia capitalista uma arquitetura que podemos traduzir em poucas palavras como ‘fuga de cérebros’, ou seja, já há universidades do exterior fazendo processo seletivo dos melhores alunos brasileiros em São Paulo ensejando aproveitar os ativos intelectuais aqui mal aproveitados. O Brasil ainda está para examinar mais detidamente se os programas de intercâmbio que promoveu se traduzem num aumento da PTF (produtividade total dos fatores) no médio e longo prazo em futuros estudos, mas as notícias que se vê na grande mídia não são animadoras. O que se vê são alunos fazendo ‘turismo contemplativo’ no exterior porque não sabem falar o idioma; alunos indo ao exterior esperando dar conta das cátedras ofertadas pelos professores e submetendo-se a um processo de imersão prévio de seis meses a um ano para aprender o idioma sem sucesso, como no recente caso canadense em que chamou-se vários alunos de volta ao Brasil, constituindo fragrante desperdício de dinheiro público. Também há notícias de universidades inglesas queixando-se da falta de comprometimento dos alunos e cogitando 'deixar de oferecer bolsas de alunos no futuro'. O prêmio nobel de medicina, Randy Schekman, apertou uns calos em 2013 com um artigo na prestigiada ‘nature’, vaticinando que o produtivismo inócuo distorce a ciência: “pressão dos cientistas para publicar nessas revistas de luxo encorajam pesquisadores a perseguir campos científicos da moda”, atacou no jornal 'the guardian'. Segundo o americano “Um trabalho pode ser muito citado porque é boa ciência, ou porque é chamativo, ou provocativo ou incorreto”. A parte mais dura da crítica de Schekman é a 'mcdonaldização' da ciência: “Os pesquisadores da revista de luxo sabem disso, por isso aceitam trabalhos que vão repercutir porque tratam de assuntos que são 'sexy' ou propõe conclusões desafiadoras. Isso influencia a ciência que os cientistas produzem; construindo bolhas de 'pesquisa fashion' nas quais os pesquisadores podem fazer propostas ousadas que essas revistas desejam, e desencorajando a realização de outras pesquisas importantes, como a replicação de resultados”. Recomenda-se assistir ao vídeo da palestra crítica do professor Ouriques na íntegra, pois esta ação conjunta do centro acadêmico e da Brasil TI – empresa júnior do curso – começa a fazer muita gente ver com desconfiança programas antes tidos unanimemente como positivos entre a comunidade universitária e desvelam uma crise com que poucos se importam. Este papel denunciador pertencia anteriormente à Darcy Ribeiro, ficando desemparado em anos recentes. Os temas como a fuga de cérebros, a transferência tecnológica do centro para a periferia, a ideologia de que é preciso publicar a qualquer custo, as limitações dos programas de intercâmbio, a contribuição efetiva dos doutores e programas de pós-graduação e o pagamento de royalties para patentes foram examinados friamente ampliando a consciência crítica do distinto público, que começa a questionar com descrença as medidas do governo de condução do sistema nacional de inovação.