Formação e Invalidação dos atos administrativos Introdução. Perfeição, validade e eficácia do ato administrativo. Classificação doutrinária dos atos inválidos. Atos nulos, anuláveis e inexistentes: regime jurídico. Efeitos da invalidação dos atos nulos, anuláveis e inexistentes. Não há como falar de formação sem pressupor um processo. E, tratando-se da formação do ato administrativo, não é diferente. Os elementos, mediante um processo de formação orientado à consecução do interesse público, produzem uma manifestação formal da vontade da Administração, consubstanciada em um pronunciamento preordenado a gerar efeitos no mundo jurídico, modificando-o. Esse processo de formação é a porta de entrada do ato para o mundo jurídico. Incompleto o ciclo de formação, não existe ato administrativo, tão somente um potencial, que pode ou não vir ao mundo jurídico. Nesse sentido, preciosa é a lição de GUALAZZI: O ato administrativo inexistente é o que nem entra no mundo jurídico, por não ter completa sua arquitetura, pois lhe falta elemento estrutural básico: é o ato que não se perfez. Inexiste porque não tem forma, não recebeu conformação suficiente de ato administrativo: trata-se de ato desqualificado para o Direito Público, desnaturado para o Direito Administrativo. É um não-ato. (GUALAZZI 1980:15) O estudo dos conceitos de perfeição, validade e eficácia do ato administrativo orienta-se no sentido de examinar o iter determinado pelo ordenamento jurídico para o alcance desse produto final, bem como sua conformação com as demais espécies normativas. Perfeição, validade e eficácia dos atos administrativos Perfeição Segundo os ensinamentos de MEDAUAR, considera-se perfeito o ato administrativo que resultou do cumprimento de todas as fases relativas a sua formação, podendo, então, ingressar no mundo jurídico[1]. Na lição de GASPARINI, o ato administrativo é perfeito ou formado quando tem motivo, conteúdo, finalidade, forma, causa e assinatura da autoridade competente; em suma: o ato existe. Nesse sentido é chamado ato existente[2]. O ato perfeito, para a doutrina administrativista majoritária, difere do conceito de ato jurídico perfeito, presente no art. 5º, XXXVI, da Constituição da República Federativa do Brasil e definido no art. 6º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil. O conceito de perfeição, para o Direito Administrativo, carrega o sentido de conclusão do processo de formação, de finalização[3], enquanto o ato jurídico perfeito denota a estabilização de uma relação jurídica[4]. Contrário a essa posição, é o ensinamento de CARVALHO FILHO, para quem o ato administrativo perfeito é semelhante ao ato jurídico perfeito (art. 6º, § 1º, da LICC e art. 5º, XXXVI, da CF), ou seja, insuscetível a prejuízos oriundos da retroatividade de lei[5]. A ideia de perfeição guarda estreita correlação com a de existência do ato administrativo. Leciona AMARAL, orientado por um perspectiva kelseniana, que não se pode falar em ato administrativo perfeito, porque se o processo de produção do ato administrativo se interrompe e o ato, como diz a maioria da doutrina administrativista, “não se aperfeiçoa”, não chega a existir ato administrativo. Ato administrativo inexistente, portanto, seria uma contradição em termos, e da mesma maneira, ato administrativo existente, um pleonasmo[6]. De todo o exposto, é possível concluir que o ato administrativo que não completou todas as fases necessárias ao processo de formação – ato imperfeito – não entra no mundo jurídico; é, portanto, um “não-ato”[7]. Ademais, tendo em vista que a perfeição pressupõe a eficácia e a validade, despiciendo seria mencionar que o ato não goza de validade, no ordenamento jurídico, nem pode gerar efeitos. Validade O conceito de validade guarda correlação com a ideia de pertinência. Na perspectiva kelseniana, validade e existência são conceitos idênticos[8]. Sobre o tema, importantes são as lições de AMARAL[9]: Seguindo Kelsen (“Teoria Geral das Normas”, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 1986, p. 216), pode dizer-se que é pleonástica a expressão ato administrativo válido. O ato administrativo existe ou não existe: ou há ato administrativo, ou não há ato administrativo. Ato administrativo que não se “aperfeiçoa”, ou seja, cujo processo de produção não se completou, não existe. Logo, não se pode falar em ato administrativo imperfeito, assim como não se pode falar em ato administrativo inexistente. Ao existir, o ato administrativo vale. Só deixa de valer quando tem sua validade desconstituída, quer por outro ato administrativo, quer por uma decisão judicial. A desconstituição de sua validade por outro ato administrativo distingue-se da desconstituição de sua validade por uma decisão judicial porque o ato administrativo que desconstitui a validade de um outro ato administrativo pode, por sua vez, ser anulado por uma decisão judicial. Não há contradição em dizer-se que uma norma deve ter seu fundamento de validade em outra de escalão superior e, ao mesmo tempo, que validade é igual a existência. Quando um cientista do Direito descreve uma norma como inválida, está formulando uma proposição jurídica. Como essa proposição não tem o condão de expulsar a norma do sistema, esta continua a existir (a valer). Ela existe (vale) na medida em que não é expulsa do sistema, ou seja, não tem sua validade desconstituída por um órgão produtor/aplicador do Direito. Assim, existência e validade se identificam. Norma válida é, como diz Kelsen, pleonasmo. Norma existente também é. O que não impede que o cientista do Direito descreva uma norma (existente e objetivamente válida) como inválida, a seu juízo. Mas somente um ato de vontade (mais apropriadamente: uma declaração estatal) – e não um ato de conhecimento – retira a validade (e a existência) de uma norma. Muito embora a doutrina majoritária adote a distinção entre existência e validade – fundamentada na premissa de que o ato administrativo pode ter completado todas as fases de sua formação, ter entrado em vigor e, no entanto, conter ilegalidade que implicará no não reconhecimento de efeitos que tenha produzido[10] – permanece o entendimento de que a validade é condição sem a qual o ato administrativo não pode pertencer, sem percalços, ao ordenamento jurídico. O ato administrativo, portanto, é válido na medida em que cumpre os requisitos necessários ao ingresso e permanência no ordenamento jurídico. Nesse sentido leciona MELLO, afirmando que válido é o ato administrativo expedido em absoluta conformidade com as exigências do sistema normativo; que se encontra adequado aos requisitos estabelecidos pela ordem jurídica. Para o referido autor, validade é a adequação do ato às exigências normativas[11]. Destarte, não observada a adequação entre o ato e as exigências normativas, será inválido. Entretanto, faz-se mister ressaltar que, como bem leciona AMARAL, a condição de invalidade do ato administrativo existirá apenas como uma proposição jurídica, até que outro ato administrativo seja praticado com o intuito (e, por consectário lógico, com aptidão) de expulsar o primeiro do ordenamento jurídico, que continuará produzindo os efeitos a que se destinou até a ocorrência de tal evento extintivo. Essa invalidação muitas vezes pode ser obstada em vista de determinadas circunstância; sobre essa questão, em específico, é que incide a problemática da decadência do direito de anular da administração, que será tratada de maneira mais detalhada em outro momento. Eficácia Conforme salientado no capítulo anterior, o ato administrativo, como forma de manifestação da vontade estatal, orienta-se à produção dos efeitos almejados pelo agente público que o pratica na persecução do interesse público. Seguindo os ensinamentos de MELLO[12], eficácia é a situação atual de disponibilidade para produção dos efeitos típicos, próprios, do ato. A eficácia, portanto, é essa aptidão do ato administrativo para produção de efeitos no mundo jurídico. AMARAL leciona que a eficácia pode ser fática ou jurídica. Ela é fática quando a conduta humana contida no ato é realizada; é jurídica quando o ato, por existir, tem a aptidão de criar relações jurídicas[13]. Parte da doutrina entende que o ato administrativo é eficaz quando está disponível para a produção de seus efeitos imediatamente; ou seja, quando o desencadear de seus efeitos típicos não se encontra dependente de qualquer evento posterior, como uma condição suspensiva, termo inicial ou ato controlador a cargo de outra autoridade[14]. Entretanto, outra corrente doutrinária, seguida por CARVALHO FILHO, entende que a eficácia é uma consequência da conclusão do ciclo de formação do ato administrativo, perfilhando a tese de que se o ato completou seu ciclo de formação, pode ser considerado eficaz, e isso ainda que dependa de termo ou condição futuros para ser executado[15]. A produção de efeitos ou não estaria relacionada à exequibilidade, que diferentemente da eficácia, é mitigada em virtude de termo ou condição suspensiva. Ainda sobre a produção de efeitos, importante é a distinção feita por MELLO entre efeitos típicos e atípicos do ato administrativo, senão vejamos: Distinguem-se os efeitos típicos, ou próprios, dos efeitos atípicos. Os primeiros são efeitos correspondentes à tipologia específica do ato, à sua função jurídica. Assim, é próprio do ato de de nomeação habilitar alguém a assumir um cargo; é próprio ou típico do ato de demissão desligar funcionário do serviço público. Os efeitos atípicos, decorrentes, embora, da produção do ato, não resultam de seu conteúdo específico. Os efeitos atípicos podem ser de dupla ordem: efeitos preliminares ou prodrômicos e efeitos reflexos. Os preliminares existem enquanto perdura a situação de pendência do ato, isto é, durante o período que intercorre desde a produção do ato até o desencadeamento de seus efeitos típicos. Serve de exemplo, no caso dos atos sujeitos a controle por parte de outro órgão, o dever-poder que assiste a este último de emitir o ato controlador que funciona como condição de eficácia do ato controlado. Portanto, foi efeito atípico preliminar do ato controlado acarretar para o órgão controlador o dever-poder de emitir o ato de controle. Efeitos reflexos são aqueles que refluem sobre outra relação jurídica, ou seja, que atingem terceiros não objetivados pelo ato. Quer-se dizer: ao incidir sobre uma dada situação, o ato atinge outra relação jurídica que não era seu objeto próprio. Os efeitos reflexos, portanto, são aqueles que alcançam terceiros, pessoas que não fazem parte da relação jurídica travada entre a Administração e o sujeito passivo do ato. (MELLO 2008:335-336) Ressalta MEDAUAR que, para que o ato administrativo produza seus efeitos, é necessário que esteja em vigor. Em razão dessa premissa, leciona a autora que, diante do que determinar o interesse público, os efeitos dos atos administrativos poderão ser modulados da seguinte forma: Assim, três situações podem ocorrer: a) o início da eficácia coincide com a entrada em vigor, ocorrendo o efeito imediato; b) a eficácia ocorrem em data posterior à da entrada em vigor, havendo a eficácia retardada também denominada ultratividade; é o caso de atos cuja eficácia depende da realização de evento extrínseco ao ato ou de termo inicial fixado para adiante; c) a eficácia ocorre em data anterior à da entrada em vigor; neste caso o ato administrativo produz efeitos em momento anterior a sua existência jurídica, havendo deslocamento de suas consequências para época em que não vigorava, para o passado; esta situação recebe o nome de retroatividade do ato administrativo. De regra, o ato administrativo geral e especial tem efeito imediato, isto é, aplica-se ao presente, a partir da sua entrada em vigor, respeitando os efeitos jurídicos, produzidos no passado. Vigora, como princípio, desse modo, a irretroatividade do ato administrativo. No entanto, muitos atos produzem efeitos no passado, com justificativa na observância de princípios que regem a atividade administrativa, tais como o da legalidade, o da continuidade; por exemplo: a anulação, reintegração, nomeação ou designação com efeito no pretérito. De acordo com GASPARINI, a vigência e a eficácia do ato administrativo são características que não se confundem. Para o célebre autor, a vigência expressa o período de permanência do ato no ordenamento jurídico – é a dimensão temporal do ato; já a eficácia é a prontidão para produzir efeitos. Assim, por consectário lógico, mostra-se perfeitamente observável a hipótese de ato vigente e ineficaz, embora, conforme o salientado, o contrário não se possa verificar, pois segundo o autor, a vigência e a eficácia, na prática, decorrem da publicação ou do conhecimento do ato pelo seu destinatário[16]. No que concerne à perfeição, validade e eficácia dos atos administrativos, e a independência entre esses critérios de formação do ato administrativo, preciosa é a lição de MELLO[17], quando esclarece, sinteticamente, as hipóteses de não preenchimento de um dos dois últimos requisitos e seus efeitos correspondentes, que passamos a sistematizar da seguinte forma: a) ato perfeito, válido e eficaz: quando, concluído o seu ciclo de formação, encontra-se plenamente ajustado às exigências legais e está disponível para deflagração dos efeitos que lhe seriam inerentes; b) ato perfeito, inválido e eficaz: quando, concluído seu ciclo de formação e apesar de não se achar conformado às exigências normativas, encontra-se produzindo os efeitos que lhe seriam inerentes; c) ato perfeito válido e ineficaz: quando concluído seu ciclo de formação e estando adequado aos requisitos de legitimidade, ainda não se encontra disponível para a eclosão de seus efeitos típicos, por depender de um termo inicial ou de uma condição suspensiva, ou autorização, aprovação ou homologação, a serem manifestados por uma autoridade controladora; d) ato perfeito, inválido e ineficaz: quando, esgotado o seu ciclo de formação, sobre encontrar-se em desconformidade com a ordem jurídica, seus efeitos ainda não podem fluir, por se encontrarem na dependência de algum acontecimento previsto como necessário para a produção dos efeitos (condição suspensiva ou termo inicial, ou aprovação ou homologação dependentes de outro órgão). Classificação doutrinária dos atos inválidos Como mencionado anteriormente, a validade é condição sem a qual não pode haver, sem percalços, a permanência dos atos administrativos no mundo jurídico; reputa-se inválido, portanto, o ato administrativo incapaz de permanecer no mundo jurídico, por não se conformar com as exigências normativas necessárias a sua pertinência a essa realidade. Conforme leciona CRETELLA JÚNIOR, a lei rejeita e desconhece o ato inválido, privando-o de sua tutela a tal ponto que lhe falta aptidão para produzir os efeitos jurídicos peculiares aos atos que encerram todos os requisitos exigidos pelo esquema legal a que deveria ajustar-se[18]. Tomando como premissa o entendimento de que inválido é o ato que não possui aptidão para permanecer no mundo jurídico, gerando efeitos, por não se conformar com as exigências normativas do ordenamento jurídico, adota-se classificação mais ampla, que admite como inválidos, em razão dos vícios apresentados, os atos nulos, anuláveis e inexistentes [19]. Todavia, questão controvertida no âmbito do Direito Administrativo é tal classificação. E essa discussão decorre de uma ainda maior, referente à possibilidade de aplicação, no Direito Administrativo, de uma chamada teoria das nulidades; semelhante, guardadas as devidas proporções, a que se observa no Direito Civil. AGUSTIN A. GODILLO[20], manifestando sua discordância acerca da possibilidade da aplicação ao direito administrativo da teoria privatística das nulidades, faz as seguintes observações: 1) no Direito Civil a nulidade refere-se sempre a um elemento do ato, enquanto no Direito Administrativo o mesmo não ocorre; 2) os vícios que maculam o ato de direito privado estão necessariamente contemplados em lei, diversamente do direito administrativo no qual não há previsão expressa das nulidades, não havendo assim a aplicação da regra do ‘pas nullité sans texte’; 3) apenas os órgãos do Poder Judiciário podem declarar a nulidade de ato de direito privado, enquanto em se tratando de atos administrativos tanto o Judiciário quanto a própria Administração podem fazê-lo; 4) no Direito Administrativo a violação diz respeito não apenas a normas legais, mas a constitucionais e regulamentares; 5) o sistema de nulidades do Direito Civil é estático, enquanto o do Direito Administrativo é dinâmico; 6) o objetivo das nulidades do Direito Civil é assegurar a real manifestação de vontade das partes, enquanto no Direito Administrativo a finalidade é assegurar o interesse público. SEABRA FAGUNDES[21], ao versar sobre o tema, entendeu mitigada a viabilidade de transposição de tal teoria privada, em razão das peculiaridades do Direito Administrativo: Atenta, porém, à particular natureza dos atos administrativos, não pode ser acolhida, sem reserva, a sistematização da legislação civil, que é, em muitos casos, evidentemente inadaptável àqueles atos. A nulidade, como sanção com que se pune o ato defeituoso por infringente das normas legais, tem no Direito Privado, principalmente, uma finalidade restauradora do equilíbrio individual perturbado. No Direito Público já se apresenta com uma função muito diversa. O ato administrativo, em regra, envolve múltiplos interesses. Ainda quando especial, é raro que se cinja a interessar um só indivíduo. Há quase sempre terceiros cujos direito afeta. DI PIETRO[22], em comentário sobre os ensinamentos do célebre jurista, esclarece sua sistematização da aplicação parcimoniosa da teoria das nulidades aos atos administrativos viciados, dividindo-os em três categorias: atos absolutamente inválidos ou atos nulos, atos relativamente inválidos ou anuláveis e atos irregulares. Os atos nulos seriam os que violam regras fundamentais atinentes à manifestação da vontade, ao motivo, à finalidade ou à forma, havidas como de obediência indispensável pela sua natureza, pelo interesse público que as inspira ou por menção expressa da lei. Anuláveis, por sua vez, seriam os que infringem regras atinentes aos cinco elementos do ato administrativo, mas, em face de razões concretamente consideradas, se tem como melhor atendido o interesse público pela sua parcial invalidez; para o autor, tratando-se de ato relativamente inválido, se estabelece uma hierarquia entre dois interesses públicos: o abstratamente considerado, em virtude do qual certas normas devem ser obedecidas, e o ocorrente na espécie, que se apresenta, eventualmente, por motivos de ordem prática, de justiça e de equidade em condições de superar aquele. Por fim, atos irregulares seriam os que apresentam defeitos irrelevantes, quase sempre de forma, não afetando ponderavelmente o interesse público, dada a natureza leve da infringência das normas legais; os seus efeitos perduram e continuam, posto que constatado o vício; é o caso em que a lei exige portaria e se expede outro tipo de ato. Faz-se mister mencionar que, conforme bem ressalta MELLO, em razão do grau de repúdio observado no ordenamento jurídico, os atos irregulares não são considerados inválidos, uma vez que seus efeitos não poderão ser invalidados [23]. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello[24] admite uma classificação dicotômica, entre atos nulos e anuláveis. Nulo será, quanto à capacidade da pessoa, se praticado o ato por pessoa jurídica sem atribuição, por órgão absolutamente incompetente ou por agente usurpador da função pública. Será nulo quanto ao objeto, se ilícito ou impossível por ofensa frontal à lei, ou nele se verifique o exercício de direito de modo abusivo. Será nulo, ainda, se deixar de respeitar a forma externa prevista em lei ou preterir solenidade essencial para a sua validade. Ao contrário, será simplesmente anulável, quanto à capacidade da pessoa, se praticado por agente incompetente, dentro do mesmo órgão especializado, uma vez que o ato caiba, na hierarquia, ao superior. Outrossim, será tão somente anulável o que padeça de vício de vontade decorrente de erro, dolo, coação moral ou simulação. CRETELLA JÚNIOR, partidário de corrente doutrinária defensora da teoria da invalidade dos atos administrativos, admite que a anulabilidade dos atos administrativos encontra lugar especial em detrimento da nulidade, extensão pela qual duplamente se afasta da teoria privatística: a uma, porque enquanto alguns dos vícios dão lugar à nulidade, no direito privado, no direito administrativo dão causa a simples anulabilidade, sendo este um critério quantitativo; e ademais, sob um aspecto qualitativo, o direito administrativo leva em consideração, além dos vícios de legitimidade, os de mérito, que, juntamente com algumas formas de excesso de poder, são de todo ignorados pelo direito privado[25]. WEIDA ZANCANER adota divisão quadripartite, asseverando que os atos administrativos, quando contrários às normas do ordenamento jurídico, podem ser: relativamente sanáveis, absolutamente sanáveis, relativamente insanáveis e absolutamente insanáveis[26]. AMARAL, por sua vez, classifica os atos administrativos viciados em convalidáveis e inconvalidáveis. Faz-se mister destacar que ambos fazem uso de uma espécie de tradução da teoria das nulidades do direto privado para o administrativo. COUTO E SILVA, em uma análise do direito comparado sobre a aplicação da teoria das nulidades no direito administrativo, ressalta a tendência manifesta pelos países europeus em se posicionarem favoráveis à clássica repartição dicotômica entre atos nulos e anuláveis. Todavia, pondera o autor que, embora as categorias sejam as mesmas – atos nulos e anuláveis – houve a alteração do conteúdo semântico, de modo que os atos nulos passaram a ser interpretados como aqueles padecedores de tal patologia que os assemelha aos inexistentes; ao passo que os anuláveis passaram a significar toda espécie de ilegalidade e inconstitucionalidade ordinariamente observável (atos nulos e anuláveis), senão vejamos: Para resumir em poucas palavras os grandes traços dessas tendências contemporâneas do Direito Administrativo, em matéria de invalidade dos atos administrativos, pode-se dizer que os atos inválidos continuam sendo divididos em atos nulos e em atos anuláveis, como sempre se fez, mas possuindo agora esses qualificativos um outro conteúdo semântico. A diferença com os esquemas de pensamento tradicional está em que os atos administrativos nulos, na concepção atual, constituem um número extremamente diminuto de atos jurídicos, marcados por tão evidente, estridente, manifesto e grosseiro vício que, no direito de alguns países, como a França e a Itália, são eles tidos como atos inexistentes. (COUTO E SILVA 2005:29) Contrário a todos os doutrinadores anteriormente citados, MEIRELLES não admite a classificação dicotômica entre atos nulos e anuláveis, senão vejamos: O ato administrativo é legal ou ilegal, válido ou inválido. Jamais poderá ser legal ou meio legal, válido ou meio válido, como ocorreria se se admitisse a nulidade relativa ou anulabilidade, como pretendem alguns autores que transplantam teorias do Direito Privado para o Direito Público sem meditar na inadequação aos princípios específicos da atividade estatal: o que pode haver é a correção de mera irregularidade que não torna o ato nem nulo, nem anulável, mas simplesmente defeituoso ou ineficaz até sua retificação. (MEIRELLES 1992:177) Em mais recente edição, assim dispõem sobre a questão os atualizadores de sua obra: Todavia, continuamos a não aceitar o chamado ato administrativo anulável, no âmbito do Direito Administrativo, justamente pela impossibilidade de preponderar o interesse privado sobre o público e não ser admissível a manutenção de atos ilegais, ainda que assim o desejem as partes, porque a isto se opõe a exigência da legalidade administrativa. MEIRELLES 2008:177 OLIVEIRA compartilha do mesmo entendimento do citado autor, ao mencionar que, ao invés de divisá-las [as invalidades] sob o ângulo das nulidades e das anulabilidades, sem se chegar a precisar, com exatidão, o que se pretende significar, não vemos o ato anulável[27]. Comunga MEDAUAR da mesma opinião quanto à impropriedade da divisão dicotômica entre atos nulos e anuláveis: Como se pode depreender, o tratamento das nulidades no Direito Civil separa os defeitos referentes a normas de ordem pública e os defeitos decorrentes de normas protetoras de interesses de pessoas. E leva em conta as consequências de tais defeitos nas ações civis. No direito administrativo essa diferença não se sustenta, pois todas as normas são, em princípio, de ordem pública e todos os atos administrativos são editados para atendimento do interesse público. Mesmo na esteira da moderna tendência de se buscar a conciliação de todos os interesses envolvidos numa questão, até interesses privados, o interesse público há de prevalecer. (MEDAUAR 2002:188) Em relação aos critérios de classificação das invalidades, CASTRO pondera que a doutrina tradicional preocupa-se equivocadamente com o caráter ontológico das invalidades, graduando-as em relação às deficiências estruturais e internas do ato administrativo, ao invés de sopesá-las em relação ao ordenamento jurídico e a organização hierárquica nele existente. Destarte, propõe o referido autor uma classificação diversa, ponderando as invalidades em relação ao grau de confronto com as normas do ordenamento jurídico, hierarquicamente consideradas; tendo como inexistentes os atos contrários à Constituição da República Federativa do Brasil, nulos os contrários à leis imperativas, e anuláveis os contrários a preceitos cujo ordenamento apresenta maior flexibilidade, usualmente atinentes à forma e competência, senão vejamos: A doutrina preocupa-se com a ontologia do objeto da valoração (ato inválido), mas se furta ao peremptório fator da classificação sistemática – a valoração do objeto: norma definidora da sanção/vício, inerente ao caráter dogmático do juspositivismo neo-constitucionalista ocidental. Com a vênia dos citados autores, pensamos que o vício do ato administrativo, a despeito de ínsito ou atinente ao suporte fático, define-se pelo grau de reprovação em função do Direito/juridicidade maculado. Assim, o defeito não vale por si só, em razão de seus efeitos ou genética pressuposta, mas é corolário da hierarquia da norma contra a qual se confrontou a conduta administrativa viciada. Decisivamente, o cotejo do ato administrativo contra a norma maculada é que determina a respectiva ‘sanção’ invalidante em diferentes níveis. Vale dizer, a contrariedade ao Direito de acordo com o grau hierárquico da normação violada define a espécie de ato maculado: se inexistente, nulo ou anulável. A contundência do vício é preordenada pela hierarquia da norma maculada, pena de transmutação do Direito, de ciência normativa a estudo social naturalista, ao arrepio de nossa dogmática continental. O paradigma de confronto heteronomamente estabelecido é decisivo à conceitualização da sanção ora sistematizada: a) se o ato administrativo contrariar a constituição, será inexistente; v. g., ato/contrato de permissão a uma empresa para explorar uma linha de ônibus, sem que houvesse licitação, em total afronta ao art. 175 da CRFB; b) caso viole diretamente regra legal (impositiva), haverá nulidade; v. g., a transferência de um servidor por motivos políticos, nítido caso do desvio de finalidade, mitigando-se o art. 2º., parágrafo único, ‘e’ da Lei 4.717/65; c) na hipótese do ato contrariar dispositivo flexível [27] atinente aos requisitos do ato administrativo, tem-se anulabilidade; quais seriam estas normas relativizáveis/flexíveis? A forma, por ocasião do art. 22 da Lei 9.784/99 e a competência, vez que pode ser, inclusive, delegada nos termos do art. 12 da mesma Lei. Por isto que, segundo a maioria da doutrina, estes requisitos dos atos administrativos seriam convalidáveis, ou melhor, circunstanciais ao ato administrativo. (CASTRO 2009:1) Polêmica, por sua vez, é a questão atinente aos atos administrativos inexistentes. Para AMARAL[28], ato administrativo inexistente é uma contradição em termos. Segundo o autor, ato administrativo que não se “aperfeiçoa”, ou seja, cujo processo de produção não se completou, não existe. Logo, não se pode falar em ato administrativo imperfeito, assim como não se pode falar em ato administrativo inexistente. Em relação a parte da doutrina que admite a classificação dos atos inválidos em inexistentes, parcela reputa tal classificação irrelevante, tendo em vista que, como os demais vícios, a inexistência conduz à invalidade, aplicando-se as mesmas regras de invalidação a todos [29]. Entretanto, parte da doutrina julga haver regime diferenciado para os atos administrativos inexistentes[30]. Isto se deve aos mais variados conceitos que, no direito administrativo brasileiro, logra o ato inexistente, consoante será observado mais adiante. De todo o exposto, muito embora se possa verificar uma concordância entre todos os doutrinadores anteriormente citados acerca da impossibilidade de importação irrestrita da teoria das nulidades, do direito privado, para a seara do Direito Administrativo, não há consenso em relação à admissão de determinados conceitos, ou como outrora versado, de traduções, para a seara administrativista, dos relevos traçados pela aludida teoria. Todavia, em razão das consequências jurídicas que eventuais atos administrativos viciados podem provocar no ordenamento jurídico, torna-se imperioso o estudo das categorias doutrinárias identificadas pela teoria das nulidades, sobretudo em razão dos diferenciados regimes jurídicos que reclamarão esses atos administrativos viciados, no âmbito do Direito Administrativo. Nesse sentido, conforme já salientado, para o presente estudo, adotou-se a classificação que distingue os atos administrativos nulos, dos anuláveis e inexistentes, em razão dos diversos tratamentos jurídicos que essas categorias poderão reclamar, principalmente em relação aos limites estipulados pelo ordenamento para suas extinções. Atos nulos, anuláveis e inexistentes: regime jurídico Atos nulos MEIRELLES[31] leciona que nulo é o ato administrativo que nasce afetado de vício insanável por ausência ou defeito substancial em seus elementos constitutivos ou no procedimento formativo. Segundo o autor, a nulidade pode ser explícita, quando a lei a comina expressamente, indicando os vícios que lhe dão origem, ou virtual, quando a invalidade decorre da infringência de princípios específicos do Direito Público, reconhecidos por interpretação das normas concernentes ao ato. Embora, em muitos casos, qualquer cidadão tenha legitimidade para alegar a nulidade de determinado ato administrativo, bem como o Ministério Público, ela deve ser reconhecida e proclamada pela Administração ou pelo Judiciário, não sendo permitido ao particular negar exequibilidade ao ato administrativo, ainda que nulo, enquanto não for regularmente declarada sua invalidade [32]. Contrária a essa posição é o ensinamento de MELLO, ao admitir que o administrado ofereça, por sua conta e risco, uma resistência passiva ao ato administrativo reputado por nulo, descumprindo seu provimento, até posterior pronunciamento do Poder Judiciário sobre a questão[33]. MELLO classifica como nulos os atos que a lei expressamente declare – a exemplo do disposto no artigo 2° da Lei de Ação Popular – bem como os atos em que é racionalmente impossível a convalidação, pois se o mesmo conteúdo (é dizer, o mesmo ato) fosse novamente produzido, seria reproduzida a invalidade anterior[34]. No mesmo sentido, CRETELLA JÚNIOR defende que o ato administrativo nulo é, regra geral, insanável. Nas palavras do autor, sanar significa fazer desaparecer o vício, de sorte que o ato administrativo nulo não pode ser corrigido, confirmado, sanado: edita-se novamente, e os seus efeitos decorrem da nova realização, e não do ato nulo[35]. Muito embora impossível de ser sanado, o ato administrativo nulo pode sofrer o que a doutrina denomina conversão ou sanatória. Trata-se do aproveitamento de ato administrativo, que embora nulo quando considerados os requisitos necessários para a produção de determinados efeitos típicos, pode ser convertido em outro ato, cujas exigências preencheu quando de sua prática. Na lição de MEIRELLES, a chamada conversão ou sanatória de ato administrativo ocorre, por exemplo, quando uma licença para edificação definitiva, nula como licença, é aceita e validada como autorização para edificação provisória. Como bem define o célebre jurista, converte-se assim o ato nulo para um efeito, para o qual lhe faltam os requisitos legais, num ato válido para outro efeito em relação ao qual apresenta os necessários requisitos de legitimidade[36]. Não há que se confundir, contudo, conversão ou sanatória, com convalidação de atos administrativos. Em consonância com o disposto, MELLO adverte que pela conversão, quando possível, o Poder Público trespassa, também com efeitos retroativos, um ato de uma categoria na qual seria inválido para outra categoria na qual seria válido. Por conseguinte, ao contrário da convalidação, em que o ato inválido tem salvaguardados os mesmos efeitos, na conversão o ato produz, retroativamente, efeitos próprios de outro ato: aquele que seria possível[37]. Atos anuláveis Anuláveis são os atos que a lei assim declare, bem como aqueles capazes de serem repetidos sem a mácula do vício anteriormente verificado[38]. No que tange aos atos anuláveis, ressalta CRETELLA JÚNIOR que, à semelhança dos atos nulos, também penetram no mundo jurídico, de sorte que, no plano da existência, não se distinguem. Todavia, no ato administrativo anulável, há um grau inferior de nulidade, pois um elemento aparece viciado, mas com vício não fundamental. O ato, portanto, tem vida, produz, em princípio, efeito jurídico, mas só até que pela autoridade competente e a instância de quem se ache legitimado para isso, seja decretada sua anulação. Logo, a distinção entre atos nulos e anuláveis ocorre apenas no plano da validade[39]. Ao contrário dos atos nulos, os anuláveis podem ser convalidados. A convalidação, segundo o conceito formulado por MELLO, é o suprimento da invalidade de um ato com efeitos retroativos[40]. Nos termos do artigo 55 da Lei n° 9.974, de 29 de janeiro de 1999, em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração. Cumpre acrescentar que os atos anuláveis não poderão ser convalidados caso haja impugnação, administrativa ou judicial. Não seria possível conceber, em detrimento do princípio da legalidade estrita e da segurança jurídica, que seja o administrado, que impugnou tempestivamente o ato viciado, obrigado a sujeitar-se a seus efeitos. Como bem ressalta MELLO, se a convalidação fosse possível mesmo depois de haver a impugnação, seria inútil a arguição do vício, pois a extinção dos efeitos ilegítimos dependeria da vontade da Administração, e não do dever de obediência à ordem jurídica[41]. Ressalva o renomado autor apenas uma hipótese em que a convalidação pode suceder à invalidação, a saber: o caso da “motivação” de ato vinculado expendida tardiamente, após a impugnação do ato. Afirma o jurista que a demonstração, conquanto serôdia, de que os motivos preexistiam e a lei exigia que, perante eles, o ato fosse praticado com o exato conteúdo com que o foi é razão bastante para sua convalidação, uma vez que a lei não admitiria solução diversa da adotada[42]. Atos inexistentes Consoante o já informado, a doutrina é reticente quanto à importância dos atos inexistentes. Entretanto, para o presente trabalho, a referida classificação logra maior relevância, sobretudo quando considerado o regime jurídico de invalidação de tais atos. Para melhor compreensão da categoria dos atos administrativos inexistentes, é imperioso lançar mão de seus fundamentos, no direito privado, e sua utilização posterior no direito público. Jean-Marie Auby[43], em sua obra La théorie de l’inexistence des actes administratifs, alude ao surgimento da teoria dos atos inexistentes, e sua consequente importação para o direito público francês: A teoria da inexistência, no espírito daqueles que a expuseram, é uma construção mais técnica do que científica: sua elaboração foi dirigida menos pelo desejo de uma explicação racional que pela necessidade de justificar certas soluções: ela é nisso assemelhada à maioria das teorias jurídicas. Em Direito Civil a noção de ato inexistente foi invocada para remediar uma omissão do legislador quanto às sanções de certas irregularidades do casamento. Estimou-se que, em virtude do princípio de que as nulidades não se suprem e malgrado o silêncio do capítulo XII do título sobre Casamento, certos vícios essenciais como a identidade do sexo deviam ser sancionados por uma nulidade agravada, fundamentada sobre a omissão de certas condições substanciais da união matrimonial. Uma vez aplicada a este caso em particular, a teoria da inexistência tomou corpo em sua forma geral e propôs-se que funcionasse em hipóteses diferentes. O processo foi o mesmo, em realidade, em Direito Administrativo. As primeiras explanações da teoria não foram governadas, senão em pequena medida, pela ideia de estabelecer uma classificação racional das nulidades (a matéria das nulidades administrativas sendo, de resto, pouquíssimo conhecida à época). As primeiras explanações buscaram, antes de tudo, justificar certas soluções consideradas úteis: mais precisamente foi, segundo parece, para permitir aos tribunais judiciários conhecer certos atos administrativos, maculados por ilegalidades graves, que a noção de ato inexistente foi levada avante. Somente em época posterior esta noção foi objeto de análise racional, em comparação com o regime das outras nulidades. Cumpre esclarecer que, no âmbito do direito francês, a teoria dos atos inexistentes galgou maior espaço, tendo em vista a peculiar dualidade de jurisdições, a saber, a administrativa e a judiciária ou comum. Os atos considerados inexistentes revelavam em si desconformidade tal que os desqualificava, a ponto de não mais serem considerados administrativos; degenerando-se, certas vezes, a competência originária do contencioso administrativo. Outra questão do direito francês quanto aos atos inexistentes, importante para o presente trabalho, é a apontada na decisão do Conselho de Estado no affaire Dame Cachet[44], em 1922, em que se determinou que os atos administrativos somente poderiam ser desconstituídos pela própria Administração no prazo de sessenta dias, correspondente naquele ordenamento jurídico ao prazo de interposição de recurso por excesso de poder, de sorte que expirado o prazo decadencial, o ato não poderia ser mais invalidado ou desconstituído. Todavia, tratando-se de ato inexistente, inaplicável seria tal prazo decadencial, ficando o ato sempre em aberto, passível de invalidação pelo Conselho de Estado. Afirma GUALAZZI[45] que, não obstante a especial utilidade da teoria dos atos administrativos em sistemas de jurisdição dual, como o francês, nos sistemas que classifica como de jurisdição una, dentre os quais inclui o brasileiro, tal teoria revela um benefício importante: a fixação do regime jurídico aplicável, sobretudo no concernente à invalidação. Todavia, a doutrina administrativista pátria não é unânime em relação à conceituação e ao regime jurídico aplicado aos atos inexistentes. Em exame da doutrina brasileira, CRETELLA JÚNIOR pondera: No direito administrativo do Brasil, na doutrina e na prática, é aceita a classe dos atos administrativos não existentes ou não-atos com apoio na legislação positiva. Trata-se de simples fantasma de atos administrativos, de irrealidade jurídica e, como tais, não produzem efeitos jurídicos, havendo, às vezes, a possibilidade de consequências penais para os que os motivaram, como no caso da usurpação de função pública. (CRETELLA JÚNIOR 1999:298) No conceito formulado pelo autor, ato inexistente é aquele que não produz efeitos porque, faltando-lhe algum dos elementos essenciais, nunca teve existência real; não tem nenhuma eficácia, não pode jamais ser sanado, diferentemente do que acontece com o ato nulo que, em certos casos, embora excepcionais, pode eventualmente vir a ser sanado. Conclui o jurista que, de um ponto de vista geral e sintético, ao mesmo tempo, o ato inexistente aparece como aquele que não percorreu todas as fases do ciclo do procedimento exigido pela norma de direito para sua formação, como, por exemplo, o ato que não chegou a formar-se ou que, embora perto do estádio da perfeição, perde toda a virtude, visto faltar-lhe elemento considerado essencial[46]. A inexistência, comporta, ainda, subclassificação na doutrina de CRETELLA JÚNIOR[47], podendo o ato vir a ser inexistente de direito ou de fato. Afirma o autor que não seria juridicamente necessária a análise da inexistência de fato, se não fosse sustentado que, exatamente para o direito administrativo, a distinção da existência de fato da existência jurídica não é o nada, mas um fato privado; o conceito de existência de fato torna-se assim, no direito público, um conceito de qualidade, pois distingui-se o ato que é administrativo daquele que não o é. Convém trazer a lume os exemplos dados pelo autor de atos inexistentes: Assim, o ato editado, por funcionário público demente, não pode sobreviver à nulidade – será inexistente pela ausência de elemento substancial à vontade; o ato que, devendo emanar de funcionário público, é editado por particular, como acontece nos casos em que se manifesta administrativamente quem nunca foi funcionário ou que deixou de sê-lo; o ato emanado de funcionário pertence a ramo da Administração inteiramente diverso daquele que tinha competência para isso, como ato da autoridade civil em matéria de competência militar, de autoridade financeira em matéria de polícia, ou vice-versa; ao ato praticado pelo usurpador de função, o constante de documento falso, em que se dê fé de solenidades que não se verificaram, de presenças que não houve e de declarações que não foram feitas, bem como ainda aquelas aparências de ato que não correspondam efetivamente a qualquer declaração séria de vontade, ou a que falte o objeto ou que careçam em absoluto da forma legal; a declaração feita iocii causa, ou para dar exemplos com finalidade didática, não dá nascimento a nenhum negócio, não obstantes todas as aparências de ato administrativo. (CRETELLA JÚNIOR 297-298) Já MEIRELLES[48] leciona que o ato inexistente é o que apenas tem aparência de manifestação regular da Administração, mas não chega a se aperfeiçoar como ato administrativo. Quanto ao regime jurídico, afirma o autor que se equiparam, em nosso Direito, aos atos nulos, sendo, assim, irrelevante e sem interesse prático a distinção entre nulidade e inexistência, tendo em vista conduzirem ao mesmo resultado – a invalidade – e se subordinam às mesmas regras de invalidação. Consoante asseverado anteriormente, em classificação pouco ortodoxa, CASTRO define como inexistentes os atos administrativos praticados contra as disposições expressas da Constituição da República Federativa do Brasil. MELLO define como inexistentes os atos que assistem no campo do impossível jurídico, como tal entendida a esfera abrangente dos comportamentos que o Direito radicalmente inadmite, isto é, dos crimes, valendo como exemplos as hipóteses de “instruções” baixadas por autoridade policial para que subordinados torturem presos, autorizações para que agentes administrativos saqueiem estabelecimento dos devedores do Fisco ou para que alguém explore trabalho escravo[49]. No que tange ao regime jurídico, o referido autor afirma, categoricamente, que os atos inexistentes têm regime sempre muito distinto do regime dos atos nulos e anuláveis, porque, diversamente deles: a) são imprescritíveis. b) jamais pode ser convalidados, ao contrário dos atos anuláveis, e jamais podem ser objeto de “conversão”, ao contrário dos atos nulos, pois estes últimos, em algumas hipóteses, podem ser “convertidos” em outros atos; c) é cabível direito de resistência, inclusive manu militari, contra eles, diferentemente do que ocorre com os atos nulos e anuláveis; d) uma vez proclamado o vício em que incorreram, em nenhuma hipótese são ressalvados efeitos pretéritos que hajam produzido[50]. De todo o exposto, quer seja o ato inexistente por vício relativo a sua formação, ou por conter apenas aparência de ato administrativo, ou ainda, por se contrário aos princípios comezinhos do ordenamento jurídico, inexiste como manifestação da vontade estatal, não representa a ação do Estado na consecução do interesse público, razão pela qual não pode ser considerado, ao menos, ato administrativo. Efeitos da invalidação dos atos nulos, anuláveis e inexistentes Quanto aos efeitos da invalidação, a doutrina tradicional afirma que, em relação aos atos administrativos nulos, devem ser retroativos (ex tunc), alcançando todos os deslindes ocorridos antes, durante, e após a sua edição, em razão do entendimento de que os atos nulos não geram efeitos; admite-se exceção, apenas, em relação a terceiros de boa-fé, atingidos por via reflexa pelos efeitos da invalidade[51]. Já com relação aos atos administrativos anuláveis, a invalidação alcança apenas os efeitos prospectivos, contados a partir do ato que decretou a invalidação (ex nunc). Não obstante o exposto, entende-se mais acertada a posição doutrinária defendida por MELLO[52], que sustenta a modulação dos efeitos gerados pela invalidade, no sentido de que, se o ato fulminado era restritivo de direitos, a eliminação será retroativa; se o ato fulminado era ampliativo de direitos, a eliminação produzirá efeitos ex nunc, isto é, desde agora, salvo se demonstrável a má-fé do beneficiário do ato ilegal, com ou sem conluio com o agente público que o praticou. Nesse sentido, não haveria distinção, quanto aos efeitos, entre atos nulos e anuláveis. Como visto anteriormente, diante do grau de repúdio do ordenamento jurídico em relação aos atos inexistentes, que não lhes confere nenhuma possibilidade de reparo, a invalidação é o único caminho a ser adotado pela Administração, ao contrário dos atos nulos e anuláveis, que poderão ser convertidos ou convalidados, observadas as normas pertinentes. Semelhantemente aos atos nulos, a invalidação dos atos inexistentes tem caráter declaratório, pois no caso jamais houve ato administrativo praticado, tão somente um fato privado, desprovido de aptidão para a produção de efeitos típicos de ato administrativo, e inidôneo para manifestar qualquer vontade estatal. É desnecessário, portanto, mencionar que tal declaração tem caráter retroativo. No tocante ao regime jurídico dos atos inexistente, COUTO E SILVA pondera, na defesa da identidade das categorias dos atos nulos e inexistentes, em consonância com os ditames da teoria europeia das nulidades dos atos administrativos, o seguinte: Não me parece despropositado procurar trazer para o Direito brasileiro algumas das concepções básicas que informam – creio que já se possa dizer assim – o sistema europeu ou a teoria europeia das invalidades dos atos administrativos e que é, ao fim e ao cabo, de surpreendente simplicidade. Podemos sintetizá-la nos seguintes termos: (a) Atos administrativos nulos: a.1 – Redução das hipóteses de nulidade dos atos administrativos aos casos patológicos exacerbados, consistentes em vícios gravíssimos, grosseiros, manifestos e evidentes, independentemente da hierarquia da norma violada, se da Constituição ou da legislação ordinária. a.2 – Só estas invalidades podem ser decretadas de ofício pelo juiz. O direito dos interessados a postular a decretação da nulidade não está sujeito à decadência, podendo a Administração decretá-la, portanto, a qualquer tempo, no exercício da autotutela. a.3 – Os atos maculados por nulidade situam-se no limite com a inexistência e não produzem qualquer efeito desde sua origem. (COUTO E SILVA 2005:34) Assim, diante da patologia apresentada pelos atos inexistentes, o direito de invalidar da Administração jamais convalesceria com o tempo. [1] MEDAUAR 2002:170 [2] GASPARINI 2002:65 [3] MELLO 2008:354 [4] GASPARINI 2002:66 [5] CARVALHO FILHO 2005:103 [6] AMARAL 20005:4 [7] Para Odete Medauar, o não-ato assume conceituação diversa da apresentada, pois diz respeito à omissão da Administração em relação à prática de determinado ato administrativo: “O termo não ato significa as situações em que a Administração deixa de tomar decisões ou de editar ato, configurando o que se denomina, comumente, omissão, silêncio ou inércia da Administração”. (MEDAUAR 2002:184) [8] MELLO 2008:354 [9] AMARAL 2005:4 [10] MEDAUAR 2002:171 [11] MELLO 2008:354 [12] MELLO 2008:355 [13] Op. cit, p. 4 [14] Partidários desta opinião são os autores: MELLO 2008:355, GASPARINI 2002:66, AMARAL 2005:4. [15] CARVALHO FILHO 2004:103 [16] GASPARINI 2002:67 [17] MELLO 2008:356 [18] CRETELLA JÚNIOR 1999:299 [19] CF. MELLO 2008:429 [20] Apud SILVA, Clarissa Sampaio. Limites à invalidação dos atos administrativos. Ed. Max Limonad: São Paulo, 2001, p. 54 [21] Apud SILVA, Clarissa Sampaio. Limites à invalidação dos atos administrativos. Ed. Max Limonad: São Paulo, 2001, p. 41 [22] DI PIETRO 2006:250-251 [23] MELLO 2008:430 [24] Apud DI PIETRO 2006:250 [25] CRETELLA JÚNIOR 1999:303 [26] ZANCANER 1996:90 [27] OLIVEIRA 2001:127 [28] AMARAL 2005:3 [29] Cf. MEIRELLES 2008:177 [30] Cf. MELLO 2008:429 [31] MEIRELLES 2008:176 [32] MEIRELES 2008:177 [33] MELLO 2008:427 [34] MELLO 2008:437 [35] CRETELLA JÚNIOR 1999:301 [36] MEIRELLES 2008:177 [37] MELLO 2008:438 [38] MELLO 2008:438 [39] CRETELLA JÚNIOR 1999:301-302 [40] MELLO 2008:434 [41] MELLO 2008:434 [42] MELLO 2008:434 [43] Apud GUALAZZI 1980:24 [44] Cf. COUTO E SILVA 2005:30 [45] GUALAZZI 1980:24 [46] CRETELLA JÚNIOR 1999:207 [47] CRETELLA JÚNIOR 1999:297 [48] MEIRELLES 2008:178 [49] MELLO 2008:437 [50] MELLO 2008:438 [51] MEIRELLES 2008:177 [52] MELLO 2008:436