Dona Niga era uma mulher que ficara viúva cedo. Para ela, seu marido era adorável e não havia nenhum outro homem melhor do que ele. E, como ela mesma sempre dizia a todos que estavam por perto, sem perder a oportunidade, … 'ele era meu protetô! Pudia dá tudo somente para tê ele de vota pra mim'. Sua família era composta de cinco membros: o Marcus, com 'u', e os pequenos Sidney e Tamyres, ambos com 'y'. Estes dois últimos estavam estudando na mesma sala, a quinta série do ensino fundamental. O Marcus, com u, conforme sua mãe fazia questão de deixar muito bem frisado esse sufixo gramatical assim como os ípsilons do Sidney e da Tamyres, estava terminando a oitava série. Sempre que falava em seus nomes, tinham que ser com o tal do 'u' e dos ípsilons bem carregados: – Meus filhos se chama Marcus com u, hein!. Olha, meus filhos é … – Às vezes tratava logo de se autocorrigir: – Ó, meus filhos são: o Marcus, o Sidney com y e a Tamyres, também com y, hein! Era como se essas letras assumissem um papel mais importante e mais imponente do que o próprio 'o' ordinário de Marcos e os também ordinários 'i' de Sidnei e de Tamires. Ou, ainda, que essas letras pudessem significar, de alguma forma, que seus idealizadores, no caso, eles, seus pais, fossem demais criativos. Pobrezinhas letras do alfabeto português!… Marcus estava preste a entrar no Ensino Médio. Estava faltando apenas um semestre para que isso acontecesse. Era um bom aluno…Só tirava notas boas; quando não, regulares. Também, pudera! Com o atual modelo educacional do país dificilmente dá para saber ao certo quem realmente é bom ou não nos estudos. Pois, o aluno para poder passar de ano nos dias atuais praticamente não se requer dele estudo algum. Basta ter um comportamento regular, médio, ser diferente daquele que picha a escola, que desacata os professores e os funcionários com palavras obscenas e que vai a ela somente para não caracterizar seu abandono. Portanto, o aluno que tem um comportamento diferenciado, que vai às aulas, entrega as tarefas propostas pelos professores e faz as devidas avaliações – ainda que tire notas ruins – dificilmente será reprovado. No entanto, Marcus tinha realmente suas qualidades de menino bom. Não andava com más companhias e demonstrava um forte desejo de alcançar o sucesso através dos estudos, coisa que seus pais não conseguiram. Ele era o orgulho de sua mãe e ela via em si àquilo que gostaria de ter sido quando mais jovem. Assim, tal desejo era visivelmente notado em seu cansado e maltratado semblante, já desgastado pelo tempo e pela própria vida que levava: pobre, sofrida e amargurada. Porém, a coitada da mulher não escondia de ninguém esse seu forte interesse e entusiasmo de algum dia poder retornar à escola, ainda que fosse para satisfazer seu próprio ego. Conforme passavam os meses, o desejo de dona Niga crescia ainda mais. Estava decidida que voltaria aos estudos. Não se importaria com o que poderiam dizer seus familiares. Pois, não podiam imaginar uma mulher com aquela idade – já beirando a casa dos quarenta anos de idade – colocando a mochila escolar no ombro a fim de concluir um estudo que ficara para trás há muito tempo. E, o que era pior, em companhia de outros adolescentes. Tal fato seria para eles, no mínimo…repugnante. Muito menos daria importância para com a opinião daquelas suas vizinhas fofoqueiras que mal conseguiram terminar a segunda ou a terceira série do Fundamental. Diferente dela, pois pelo menos a quarta série tinha. E passava a dizer a todos – sempre quando lhe perguntavam os porquês desse seu frenético e tardio desejo – que iria fazer tal coisa apenas por mera satisfação pessoal, nada mais do que isso. E energicamente arrematava, orgulhosa, desafiadora e decidida, numa ortografia e concordância gramatical ímpar, pueril: – Um dia vou fazê isso. Pode custá o que custá. Um dia vou terminá os estudo. Vocêis vão vê só! Sem perceber já estavam em janeiro e lá estava dona Niga com seus três filhos fazendo suas rematrículas, inclusive a sua, já que não havia lei que a proibisse. Ela desejava entrar na quinta série a fim de dar continuidade de onde havia parado, porém para sua surpresa e contentamento, um funcionário da secretaria da escola lhe ofereceu a seguinte recomendação: – Olha, minha senhora! Você pode ser submetida a uma avaliação escrita a fim de tentar uma reclassificação de série. Se for aprovada, poderá cursar a sexta, a sétima ou a oitava, ou, ainda, até mesmo o Ensino Médio. E o que é melhor, poderá estudar na mesma sala de seu filho. A inesperada e feliz notícia foi ouvida por aquela sonhadora mulher de forma fulgurante. Seus olhos pareciam faiscar de tanta emoção, arregalando-se, enquanto seus lábios se apertavam e as sobrancelhas, ao se sobressaltar de tamanha felicidade, faziam reforçar ainda mais os fortes traços dos sulcos que se franziam em sua testa, apesar de não possuir idade suficiente para tal ruína. Mal o rapaz lhe entregara o comprovante da data de realização das provas – as quais foram agendadas para vinte e cinco dias – não perdera tempo. Foi logo guardando aqueles papéis como se fossem verdadeiras jóias preciosas, em um dos enormes bolsos de sua surrada e longa saia de quase noventa centímetros, até os calcanhares, listrada com interstícios ora esverdeados ora avermelhados. Pois, acreditava que aquilo que estava fazendo seria um grande marco em sua vida e que teria uma rápida ascensão cultural. Sem dúvida, aquele parecia ser o maior momento de felicidade que jamais tivera em toda a sua vida. Euforicamente, dona Niga ia se preparando para o grande dia o qual se aproximava cada vez mais. Ela não poderia perder aquele acontecimento por nada da vida, passando a contar e a riscar no 'big' calendário – daqueles que freqüentemente estão pendurados nas paredes de oficinas de automóveis e botequins – os dias que iam ficando para trás, com muita expectativa e exaltação. Restavam agora apenas dez dias e ela não parava, no entanto, de achar que o tempo estava sendo demais ingrato para consigo, que havia parado. Quando olhava a folhinha, caía em profundo desânimo; tudo por causa de tamanha ansiedade que sentia pela chegada daquele dia. Impacientava-se pela demora e descuidadamente, por três vezes, chegava a riscar dois dias na folhinha por engano. Até que finalmente ele chegou. Nos dois dias em que antecederam sua chegada, haviam caído fortes chuvas. Nas ruas, podiam ser notados alguns volumes de água que haviam sido empoçados nos buracos. E, a chuva ainda não havia dado trégua por definitivo, pois ainda caíam fracos pingos d´água e fazia um frio úmido e gelado apesar de a estação de ano não ser propícia para tal clima. Entretanto, como a mulher estava totalmente envolvida naquela atmosfera de notável magia, enfeitiçada por aquele tão aguardado momento, não quisera notar o mau tempo que fazia. Foi à cabeleireira e pediu um penteado à década de setenta, arrumando-se toda, assim como uma noiva em dia de casamento. Fez as unhas dos pés, das mãos e passou mais batom ainda, pois achava que a mulher do salão de beleza não havia passado o suficiente. Era um batom de uma forte cor, um vivíssimo carmim. Daqueles que se destacam a milhas de distância e que são usados somente em fábulas e … com o perdão da palavra, pelas meretrizes. Finalmente, após perfumar-se da cabeça aos pés, achava estar pronta. Para si, estava magnífica. Assim, partiu em direção à escola, toda decidida e orgulhosa de si. A escola ficava a uma distância de aproximadamente dez quarteirões de sua casa, talvez onze. Em seu trajeto – a pé, como sempre fazia – e num determinado ponto, teria de atravessar uma pequena e estreita ponte sobre um córrego, sem possuir qualquer proteção lateral, a fim de alcançar uma rua esburacada, sombria, que daria acesso à escola. Sem hesitar e já estando preste a ultrapassá-la – com aquele seu olhar faiscante, resoluto, de uma incontida felicidade – para seu profundo desalento, subitamente, embaixo de um de seus sapatos novos os quais foram presenteados por ela mesma somente para a estréia daquele momento, um terrível e descomunal turbelário terrestre de quase trinta centímetros fora totalmente esmagado. Essa involuntária e desastrosa ação fez com que a infeliz mulher escorregasse abruptamente, caindo por cima do que restara daquele indesejado, maldito molusco. O animal espatifara-se por completo! O brusco movimento fez com aquela desventurada criatura soltasse um estridente grito de pasmo e repulsa seguido por um terrível tombo. Enquanto isso, pelas beiradas da ponte, seu líquido asqueroso e repelente fluía, escorregava-se. Era um líquido esbranquiçado, viscoso, que se deslizava lentamente e caía, gota a gota, para fora da ponte até atingir a cabeça da infeliz que já se encontrava emersa naquele inóspito córrego – repleto de lama e de toda sorte de impurezas. Como a ponte era razoavelmente alta a fim de evitar possíveis alagamentos, com a queda, a desastrada mulher fraturou as duas costelas e ainda teve que engessar uma das pernas. No hospital, tivera de permanecer internada por tristes e longos trinta e cinco dias, além de ter que ficar em casa em repouso absoluto por mais de seis meses. Assim, deixara espatifado para trás não apenas um indesejável e nojento animal triturado, despedaçado, mas o tão sonhado desejo, pelo menos naquele ano, de… ser alguém culto, instruído na vida, como ela mesma sempre desejava e dizia a todos. 23- 26/05/05