Nas últimas semanas, voltou à baila a história de que o STF pode proibir demissões sem justa causa. É óbvio que uma informação dessas atrai a atenção de todos os administradores, empreendedores e executivos e não é para menos: essa garantia quase absoluta de estabilidade poderia sufocar a atividade empreendedora e gerar uma corrida às varas trabalhistas. Estaria o STF disposto a engessar o ambiente de negócios, matar a economia brasileira e transformar todas as empresas em repartições públicas? A gente foi atrás para descobrir e, acredite: você está se preocupando à toa. Nossa missão hoje é convencer você de que esse é o tipo de assunto que vira piada no happy hour de firmas trabalhistas. O STF vai proibir demissão sem justa causa? Estamos falando da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1625, que foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) no ano da graça de… 1997. Sim, são 25 anos que a ação tramita no STF — e não é, nem de longe, a mais antiga. SEMPRE que um dos ministros devolve o voto-vista, o pânico volta às manchetes. A novidade dessa vez não vem da tramitação da ADI, e sim de uma norma de funcionamento do STF criada no finalzinho de dezembro, que limita a 90 dias o prazo para que os processos permaneçam na gaveta de cada ministro aguardando votação. Depois desse prazo, a ação é automaticamente liberada para análise dos outros togados. Pedidos de vista, para quem não sabe, podiam ficar anos e anos aguardando apenas um voto. Em 2020, a Suprema Corte decidiu que o Palácio da Guanabara pertence à União em um processo iniciado pela Princesa Isabel. Agora isso muda. Uma das ações que já estava criando teias e que deve ser liberada para o plenário até setembro desse ano é a ADI 1625 — o centro das controvérsias envolvendo a justa causa. Mas do que trata a ADI 1625? A ADI 1625 questiona o STF se um presidente pode denunciar uma resolução internacional da qual o Brasil é signatário sem consultar o Congresso. SENTIU A PRESSÃO? Calma, vamos deixar mais claro. A resolução em questão é a Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Entre dezenas de artigos, ela prevê o seguinte: Art. 4 — Não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço. (Grifo nosso). Guarde o termo “causa justificada”. A adesão do Brasil à Convenção foi confirmada pelo Congresso Nacional em janeiro de 1995 e promulgada em abril de 1996. Só que alguns meses depois, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) denunciou a Convenção sem submeter a decisão ao Congresso. 'Denunciar', nesse caso, equivale a mandar às favas. A forma como essa denúncia se deu, sem passar pelo Legislativo, abriu um flanco para que a CONTAG e a CUT a questionassem no STF, que agora precisa decidir se o caminho tomado pelo Executivo está de acordo com a Constituição — a maioria dos votos até o momento diz que não, portanto a ratificação continuaria valendo. “O Legislativo estaria subordinado ao Executivo? Lula, assim como qualquer outro presidente, poderia denunciar unilateralmente outros tratados ou ele precisaria da chancela do Legislativo? Essa é a discussão”, esclarece Gabriel Henrique Santoro, advogado trabalhista do escritório Juveniz Jr Rolim Ferraz Advogados e coordenador de Pós Graduação no Centro Universitário Adventista de São Paulo. Viviane Rodrigues, advogada trabalhista do Cescon Barrieu Advogados, vai direto ao ponto: “O artigo 49 da Constituição deixa claro que todos os acordos internacionais devem ser submetidos ao Congresso. Em 1996 tivemos um decreto cancelando a adesão do Brasil sem essa apreciação pelo Legislativo. Portanto toda a discussão é técnica.” Voltando ao tema da conversa… Mas isso quer dizer que as empresas não poderão demitir ninguém se não for por justa causa? É aqui que o caldo entorna. A “causa justificada” (lembra dela?) que aparece no documento da OIT não é o mesmo que a “justa causa” da CLT brasileira. A própria convenção prevê que a capacidade do trabalhador para o cargo, comportamento ou seu enquadramento nas necessidades de funcionamento do negócio podem ser justificativas para a demissão. O que não pode é demitir sem justificativa. E essas justificativas não podem incluir razões como filiação sindical, gravidez, raça, sexo e religião — observe que muitas dessas situações já são protegidas pela Lei brasileira. “A Convenção 158 fala em justo motivo. É muito mais amplo que justa causa. O justo motivo pode ser o fechamento de uma unidade da empresa ou uma queda no faturamento do negócio. Não é que todo mundo vai ter estabilidade do dia para a noite”, enfatiza Santoro. Controvérsia revela um vácuo na legislação sobre demissões Há ainda toda uma discussão técnica sobre se a Convenção 158 entraria automaticamente como Lei Complementar ou se seria necessário regulamentar a resolução com uma nova Lei. Mas o fato é que a proteção contra demissões arbitrárias já está prevista na Constituição desde 1988, bem antes da ratificação da resolução. E aqui o plot twist: Essa proteção não existe formalmente. Apesar de previsto, o tema nunca foi regulamentado em 35 anos. É um dos vários tópicos que ficaram pendentes após a promulgação da CF. E outra: mesmo com esse barulho, a proteção contra demissões arbitrárias não vai entrar em pauta. Viviane Rodrigues reconhece que não há sequer pressão organizada por parte de organizações e partidos trabalhistas. Na prática, entretanto, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e o Seguro-Desemprego já cumprem esse papel de proteção após a dispensa sem justa causa. O que pode acontecer então? Caso o STF julgue a ADI procedente — o que deve acontecer até setembro, segundo os prazos do regimento interno —, o Brasil voltaria a ser signatário da Convenção, mas isso em nada interferiria na dinâmica de contratações e demissões. Hoje, há duas possibilidades principais: 1. O STF modulará os efeitos de uma decisão favorável à ADI para incluir um marco temporal e evitar questionamentos acerca de demissões passadas. Esse é o cenário mais provável segundo os dois especialistas citados na matéria. 2. O STF anulará os efeitos da decisão de FHC, mas recomendará ao Congresso que cumpra o rito para garantir a formalidade e confirme a denúncia feita pelo ex-presidente, deixando tudo como dantes no quartel de Abrantes. O advogado Gabriel Santoro não esconde o receio de que uma decisão precipitada do STF, sem modulação de seus efeitos, provoque uma enxurrada de ações trabalhistas. Afinal, muita gente foi demitida nos últimos 25 anos e boa parte tende a não concordar com as justificativas para a dispensa. Para as empresas, no entanto, o pior dos cenários seria ter de lidar com um campo a mais no formulário de demissão ao mandar funcionários embora. Já Viviane acredita que os efeitos não são automáticos e que, sem uma Lei Complementar, nada — rigorosamente nada — mudará nas regras de demissão após a decisão do STF. E, sem clima político para passar uma mudança desse porte no Congresso, dificilmente haverá alguma mudança significativa para o RH em 2023. Existem inúmeras dificuldades que a burocracia estatal impõe aos empreendedores, mas dificultar demissões sem justa causa com base na ADI 1625 não será mais uma delas.