Um dos fenômenos culturais mais relevantes que ocorreram na história recente do Brasil é a popularização das apostas on-line. Segundo o relatório da Comscore, em 2023 o país se posicionou como o terceiro que mais consumiu apostas on-line no mundo, com cerca de 42,5 milhões de usuários únicos. Em relação ao tempo de consumo, o crescimento foi vertiginoso: 281% desde 2019, representando uma relevante tendência. No entanto, esse negócio revela-se lucrativo apenas para as plataformas que fomentam as apostas on-line, conhecidas popularmente como 'bets': de acordo com um levantamento da Forbes, o lucro delas em 2023 foi de R$ 20 bilhões, enquanto o prejuízo dos apostadores foi de R$ 23 bilhões. Além de prejuízos financeiros, as apostas on-line também afetam a saúde de alguns apostadores que não conseguem controlar sua vontade de continuar jogando. Eles são classificados como 'compulsivos' e sofrem de uma doença chamada 'ludopatia', que afeta cerca de dois milhões de brasileiros, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Essa doença é caracterizada pelo desejo incontrolável de continuar apostando, apesar das consequências negativas. Diante de tantos males citados, a tendência é que a prática continue a ser disseminada e ganhe mais popularidade nos próximos anos. As 'bets' fazem um alto investimento em marketing, representando, em média, entre 45% e 75% das receitas, e isso traz resultados expressivos: 32% da população digital do Brasil realiza apostas on-line, onde 49% desse montante pertence à classe C. Estimativas do Santander preveem que o gasto per capita do brasileiro com apostas deve dobrar até o final desta década e atingir R$ 102,00. Com os mais pobres sendo um 'alvo' mais acessível, o Banco Central do Brasil revelou que ¼ dos beneficiários do Bolsa Família destinaram parte do seu benefício social para apostas on-line, sendo um indicador preocupante no que tange a vulnerabilidade social do país. De acordo com um levantamento da Anbima, em 2023 a destinação do dinheiro do brasileiro em apostas on-line (14%) só está atrás da poupança (25%). As apostas on-line ganharam notoriedade no país, especialmente após a pandemia de Covid-19, onde o brasileiro médio ficou mais pobre. Um levantamento do IBGE apontou que 29,4% da população estava pobre e 8,4% extremamente pobre ao final do ano de 2022. Com isso, as apostas on-line surgiram como uma oportunidade de ganhar dinheiro de forma 'fácil'. Isso é disseminado por diversos influenciadores digitais, que promovem essas plataformas para seu público, com a promessa de 'ganhos' e até mesmo 'renda extra'. Considerando a relevância que as recomendações dos influenciadores digitais brasileiros têm sobre o seu público, especialmente na conversão de compra, isso torna-se uma espécie de 'bomba relógio' que já explodiu e causa estragos, sendo uma perigosa mistura. Aliado a isso, a conivência do governo federal também deve ser destacada. Apesar de a prática de apostas on-line ter sido legalizada em 2018, a sua regulamentação só veio a ocorrer 5 anos depois, quando já atuavam no país mais de 300 'bets', dentre as quais 193 foram liberadas pelo Ministério da Fazenda após cumprirem os requisitos exigidos. Um dos alicerces da regulamentação é obrigar que as empresas que operam esses sites tenham sede no país, ou seja, torna possível a responsabilização pelos possíveis danos que podem causar aos apostadores, considerando que muitas dessas empresas estavam anteriormente situadas em paraísos fiscais ou endereços fantasmas, impossibilitando a penalização por parte da justiça brasileira. De acordo com um levantamento do Senado, 42% dos apostadores brasileiros estão endividados e 1/3 deles estão fora do mercado de trabalho. Isso evidencia dois problemas socioeconômicos que são crônicos no Brasil: o impacto que a falta de educação financeira tem sobre a população e a ausência de postos de trabalho ou qualificação necessária para ocupá-los. Com isso, as apostas on-line surgem como 'alternativa' para essas pessoas que estão economicamente vulneráveis. A educação financeira é essencial para o desenvolvimento de habilidades técnicas e cultura financeira no indivíduo, sendo um meio de alcançar uma sociedade mais igualitária através do planejamento do uso do dinheiro, gerenciando hábitos de consumo e consequentemente a economia pessoal. Isso faz com que o indivíduo seja capaz de tomar decisões corretas na gestão de suas finanças. No Brasil, a educação financeira pode ser vista como uma das grandes armas contra o problema socioeconômico que afeta a população. De acordo com um estudo realizado em 2021, 70,9% das famílias brasileiras estão endividadas, sendo um número expressivo e que afeta o comportamento de consumo do brasileiro médio. Em contrapartida, somente 21% das pessoas tiveram educação financeira até os 12 anos de idade. Isso pode ajudar a justificar o cenário atual. Em um país onde existe a precarização do trabalho, arrocho salarial, constante instabilidade econômica e política, restam poucas alternativas para tentar ganhar dinheiro, como as apostas on-line. Para apostar, não é necessário ter estudo, e nem ser conhecedor de nenhuma técnica. Basta apertar alguns botões e contar com a 'sorte' dos algoritmos, que são projetados para desbalancear a experiência do apostador, aproximando-o mais da desonestidade do que da sorte. Com isso, temos ainda o agravante de existirem patrocinadores do espetáculo do caos, como os influenciadores digitais que se aproveitam da ignorância de seu público para poderem lucrar. O capitalismo selvagem em sua essência, onde a vítima é aquela que é enganada ou se deixa enganar, conscientemente ou não.