Ceticismo saudável não apaga a confiança. Só impede que ela seja usada contra você Você já deve ter vivido isso, mesmo que não admita. Alguém garante que o contrato 'fecha em dias'. Um fornecedor promete que 'até sexta está pronto'. Um amigo chega com uma oportunidade de investimento 'imperdível'. A cabeça até levanta a sobrancelha, mas o coração quer acreditar. Em épocas de ceticismo generalizado, é quase irônico: quanto maior a promessa, maior a chance de a gente cair nela. Segundo estudo publicado no Journal of Neuroscience, pesquisadores da North China University of Science and Technology encontraram um motivo bem específico para essa vulnerabilidade. Quando uma informação vem acompanhada da possibilidade de ganho, o cérebro muda a marcha. Em vez de acionar o modo alerta, ele aciona o modo recompensa. E isso nos deixa mais fáceis de enganar. Quando o ganho desarma a dúvida No experimento, 66 pessoas interagiram por telas enquanto eram monitoradas por neuroimagem. As mensagens trocadas eram organizadas pelos pesquisadores em dois contextos: situações de ganho, com benefício potencial, e situações de perda, com risco ou prejuízo possível. O que apareceu foi claro: os participantes acreditavam mais em informações falsas quando estavam diante de um possível ganho. Os escaneamentos mostraram atividade em áreas ligadas à recompensa, avaliação de risco e leitura de intenções alheias. Em outras palavras, ao sentir que há algo a ganhar, o cérebro começa a trabalhar para tornar a promessa plausível. Não é apenas ingenuidade social. É um atalho biológico na direção do que parece vantajoso. A armadilha fica maior quando vem de amigos A parte mais inquietante do estudo é que a mentira funciona melhor quando vem de alguém próximo. Quando a informação enganosa era enviada por um 'amigo', os cérebros dos dois participantes exibiam atividade sincronizada. A sincronia era tão consistente que os pesquisadores conseguiram prever com 86,66% de acerto quando alguém seria enganado por um amigo. A explicação proposta é simples e desconfortável. Relações de confiança baixam a guarda. Se a mensagem sugere que ambos podem ganhar algo, o cérebro entra em modo de parceria, não de suspeita. Em contextos de ganho, os centros de recompensa se alinham. Em contextos de perda, quem alinha são os centros de avaliação de risco. Ou seja, a proximidade cria um canal emocional que a mentira atravessa com menos resistência. Ver todos os stories 6 hábitos que sabotam seu crescimento O nordestino que ousou fazer o impossível O que está em jogo com a 'PEC da Blindagem' Uma verdade sobre suas assinaturas de streaming que você não vê Boninho, The Voice e a lição da reinvenção Por que essa tendência se repete O estudo não está sozinho. Ele conversa com outros achados que apontam o mesmo padrão: tendemos a acreditar mais quando queremos acreditar. A repetição de uma afirmação, mesmo falsa, cria familiaridade e aumenta a sensação de verdade. É o chamado 'efeito de verdade ilusória'. Some a isso o viés de confirmação, a busca automática por evidências que sustentem o que já pensamos, e o terreno está preparado. Outra peça desse quebra-cabeça é o que pesquisadores chamam de raciocínio motivado. Quando uma mentira combina com um desejo, a mente exagera os benefícios e minimiza os riscos. Não é só esperança. É percepção distorcida pela vontade. Como ser mais cético sem virar cínico A mensagem prática não é desconfiar de tudo, nem viver em paranoia profissional. É entender o momento exato em que a nossa racionalidade fica mais frágil. Se a proposta parece boa demais, principalmente quando vem de alguém que você gosta ou respeita, vale pausar e perguntar: eu estou avaliando isso com critério ou estou embalado pelo ganho? Da mesma forma, se você escuta uma ideia muitas vezes, mesmo em círculos diferentes, lembre-se de que repetição não é prova. É apenas um mecanismo que deixa a frase mais confortável para o cérebro. E se a promessa confirma o que você já queria que fosse verdade, esse é justamente o ponto em que o alerta deveria aumentar, não diminuir. Ceticismo saudável não apaga a confiança. Só impede que ela seja usada contra você.