Criada em 2012 e ampliada em 2016, a Lei Magnitsky foi pensada para punir indivíduos acusados de graves violações de direitos humanos e de corrupção em larga escala A decisão do governo dos Estados Unidos de aplicar a Lei Global Magnitsky contra o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes trouxe para o debate público brasileiro um tema de alcance internacional: a relação entre direitos humanos, política externa e disputas de poder. A medida, anunciada pelo presidente Donald Trump em 30 de julho, reacendeu discussões sobre os limites da legislação e a forma como ela pode ser usada em cenários políticos. Criada em 2012 e ampliada em 2016, a Lei Magnitsky foi pensada para punir indivíduos acusados de graves violações de direitos humanos e de corrupção em larga escala. No entanto, seu criador, o executivo britânico William Browder, afirmou que o uso contra Moraes representa um 'abuso das intenções originais'. Para compreender essa controvérsia, é necessário revisitar a história da lei, os motivos de sua criação e os impactos de sua aplicação em diferentes contextos. A origem da Lei Magnitsky: a morte de Sergei Magnitsky A legislação leva o nome de Sergei Magnitsky, advogado russo que denunciou um dos maiores esquemas de corrupção já registrados em seu país. Em 2008, Magnitsky revelou um desvio de cerca de US$ 230 milhões em impostos pagos por empresas estrangeiras na Rússia. Pouco depois, foi preso por autoridades russas, acusado de fraude. Em 2009, após quase um ano detido, Sergei morreu em uma prisão de Moscou, em condições denunciadas como negligência médica e maus-tratos. Sua morte gerou indignação internacional e motivou William Browder — cliente de Magnitsky e CEO do fundo de investimentos Hermitage Capital Management — a liderar uma campanha global em busca de justiça. Nos Estados Unidos, a pressão de Browder e de parlamentares levou à aprovação, em 2012, da primeira versão da Lei Magnitsky. Ela visava punir autoridades russas envolvidas no caso, congelando seus bens em território americano e proibindo sua entrada no país. A expansão global da lei O impacto da legislação foi tão significativo que, em 2016, o Congresso americano aprovou a Lei Global Magnitsky, ampliando seu escopo para além da Rússia. Desde então, ela pode ser aplicada contra qualquer indivíduo, em qualquer país, acusado de envolvimento em corrupção sistêmica ou violações graves de direitos humanos. Essa expansão transformou a lei em uma das ferramentas mais poderosas da diplomacia norte-americana. Ela permite que os EUA imponham sanções unilaterais sem necessidade de aprovação da ONU ou de organismos multilaterais. Congelamento de ativos, bloqueio de transações financeiras e proibição de entrada no território americano são algumas das punições previstas. Casos emblemáticos de aplicação da lei Desde sua criação, a Lei Magnitsky já foi usada contra autoridades de diferentes países. Entre os casos mais notórios estão: Rússia: dezenas de oficiais ligados ao caso Magnitsky foram punidos. China: sanções contra autoridades envolvidas em abusos contra a minoria uigur em Xinjiang. Arábia Saudita: punições a indivíduos ligados ao assassinato do jornalista Jamal Khashoggi em 2018. Nicarágua e Venezuela: aplicação contra membros de governos acusados de repressão e violações de direitos humanos. Esses episódios consolidaram a lei como um símbolo da luta contra a cleptocracia — regimes em que líderes e autoridades usam o poder para enriquecer de forma ilícita. A decisão de Trump contra Alexandre de Moraes Em 30 de julho de 2025, Donald Trump anunciou a aplicação da Lei Global Magnitsky contra Alexandre de Moraes, ministro do STF. A justificativa do governo norte-americano foi de que o magistrado estaria conduzindo 'uma campanha opressiva de censura, detenções arbitrárias e processos politizados — inclusive contra o ex-presidente Jair Bolsonaro'. A decisão teve repercussão imediata. Moraes, relator de investigações contra Bolsonaro e seus aliados, tornou-se um dos protagonistas da cena política brasileira nos últimos anos. Suas ações incluem a condução de inquéritos sobre fake news, ataques às instituições democráticas e tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023. Para críticos de Trump, a decisão tem caráter político, inserida em um contexto de aproximação com Bolsonaro e setores conservadores brasileiros. A crítica de William Browder: um 'abuso das intenções' Em entrevista à BBC News Brasil, William Browder condenou o uso da lei contra Moraes. Segundo ele, a medida distorce a concepção original da legislação: 'A Lei Magnitsky foi estabelecida para impor sanções a graves violadores dos direitos humanos e pessoas que são culpadas de cleptocracia em larga escala. Ela não foi criada para ser usada para vinganças políticas', afirmou. Browder destacou ainda que o uso atual 'é puramente político e não aborda os direitos humanos para os quais ela foi originalmente elaborada'. Para ele, essa aplicação representa um abuso da intenção da lei, que deveria se concentrar em casos de corrupção sistêmica e violações documentadas, como os que motivaram sua criação. A reação do governo brasileiro A resposta do Brasil veio rapidamente. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou solidariedade a Moraes e classificou a medida como 'inaceitável interferência do governo norte-americano na Justiça brasileira'. Segundo Lula, a decisão de Trump representa uma afronta à soberania nacional e pode gerar tensões diplomáticas. Outros ministros do STF também se pronunciaram, defendendo Moraes e criticando a aplicação da lei. A disputa política internacional O episódio se insere em um cenário de disputas políticas e ideológicas. Nos Estados Unidos, Trump busca consolidar sua base eleitoral em meio à polarização, enquanto mantém proximidade com líderes de direita ao redor do mundo. No Brasil, o caso reacende divisões internas: apoiadores de Bolsonaro celebraram a decisão americana, enquanto setores progressistas e institucionais a veem como uma ingerência inaceitável. Para especialistas, o uso da Lei Magnitsky nesse contexto levanta dúvidas sobre sua legitimidade como instrumento de direitos humanos. Impactos para o futuro da lei A polêmica em torno da aplicação contra Moraes pode ter consequências maiores. Há quem tema que a lei perca credibilidade se continuar sendo utilizada como ferramenta política. O próprio Browder alerta para esse risco: 'Se for usada de forma distorcida, corre o perigo de perder seu poder como instrumento de justiça internacional'. Por outro lado, defensores da medida argumentam que a lei sempre esteve ligada à política externa dos EUA e, portanto, é natural que seja aplicada conforme os interesses do governo vigente. O debate sobre soberania e direito internacional O caso também reacende discussões sobre soberania. Para muitos juristas, a aplicação extraterritorial de sanções unilaterais representa uma forma de ingerência. Ainda assim, os EUA defendem que, ao negar entrada ou congelar bens em seu território, exercem apenas sua jurisdição nacional. No entanto, quando essas decisões impactam figuras centrais de outros países, como um ministro da Suprema Corte, o efeito político e diplomático é inevitável. O simbolismo da Lei Magnitsky no Brasil Este episódio marca a primeira vez que a Lei Magnitsky é aplicada diretamente contra uma autoridade de alto escalão do Judiciário brasileiro. O simbolismo é forte: trata-se de um conflito entre a imagem de um magistrado como guardião da democracia no Brasil e a narrativa de Trump de que Moraes seria responsável por abusos de poder. A controvérsia expõe não apenas o alcance da lei, mas também seus limites, evidenciando como instrumentos jurídicos internacionais podem ser reinterpretados em cenários políticos polarizados. O que esperar daqui para frente O futuro da Lei Magnitsky dependerá de como será interpretada e aplicada nos próximos anos. Se prevalecer a visão original de Browder, seu foco continuará em cleptocracias e violações de direitos humanos comprovadas. Caso contrário, pode se tornar cada vez mais um instrumento de disputas políticas internacionais. No caso brasileiro, o impacto imediato será diplomático. O governo Lula deve intensificar críticas à ingerência americana, enquanto a oposição tende a usar o episódio para reforçar ataques ao STF. O episódio mostra como uma lei criada a partir de um caso de corrupção na Rússia, em homenagem a um advogado que morreu na prisão, hoje está no centro da política brasileira. E como o que começou como um instrumento de defesa dos direitos humanos pode ser reinterpretado em um jogo de poder global.