Há tarefas que a tecnologia otimiza. E há outras em que a mente humana precisa continuar sendo protagonista, não espectadora Cinco anos atrás, no auge da pandemia, o neurocientista David Rock defendia que líderes deveriam reforçar feedbacks positivos para reduzir a sensação de ameaça em times sob estresse. A lógica era simples: o cérebro humano rastreia status o tempo todo e reage mal à insegurança. Aquela conversa ficou na memória. Hoje, Rock volta ao tema com outra preocupação, mais atual e íntima. O que acontece com nossa mente quando deixamos a inteligência artificial ocupar o lugar do pensamento humano em reuniões, e-mails e tarefas que antes exigiam presença e elaboração? O alerta vem de observações e pesquisas citadas pelo próprio Rock, incluindo um estudo do MIT que acompanhou pessoas escrevendo textos com diferentes níveis de apoio tecnológico. A tese central é direta: ao terceirizar demais para a IA, corremos o risco de enfraquecer mecanismos básicos de aprendizado, lembrança e geração de insights. A presença ativa que molda entendimento Rock conta uma cena simbólica. Em uma sessão virtual, ele esperava 12 pessoas. Só seis apareceram de verdade. As outras seis enviaram agentes de IA que entraram na call, anotaram tudo e depois mandaram um resumo aos seus donos humanos. O resultado foi uma conversa esvaziada, quase protocolar. Quem já pulou uma reunião e leu apenas o sumário automático reconhece a sensação. Você entende o enredo, mas não vive a história. A explicação está no modo como o cérebro aprende em grupo. Quando pensamos na presença de outras pessoas, mesmo remotamente, ativamos mais circuitos neurais. A evolução nos moldou para captar sinais sociais sutis, quem fala, como o outro reage, o que isso significa para nossa posição no grupo. Essa ativação extra aprofunda a codificação das ideias. É o oposto de absorver conteúdo de forma passiva. Ver todos os stories 6 hábitos que sabotam seu crescimento O nordestino que ousou fazer o impossível O que está em jogo com a 'PEC da Blindagem' Uma verdade sobre suas assinaturas de streaming que você não vê Boninho, The Voice e a lição da reinvenção O que some quando só há resumo Há ainda um efeito chamado por Rock de spreading activation. Pensar em silêncio aciona certo conjunto de redes neurais. Falar sobre a mesma ideia com alguém aciona bem mais redes, em regiões diferentes do cérebro. Isso cria uma reação em cadeia. A partir de um ponto, surgem conexões com outros temas, implicações antes invisíveis, padrões que só aparecem quando a mente 'esbarra' em caminhos paralelos. Discussão gera profundidade. Quando um agente de IA entrega respostas prontas e sem debate, esse processo tende a não ocorrer. As ideias ficam mais lineares, mais rasas. Você ganha velocidade, mas perde dimensão. A memória enfraquecida e o risco aos insights O dado mais inquietante que Rock cita vem do MIT. Em um experimento de quatro meses com 54 participantes escrevendo ensaios, 83 por cento dos que usaram IA generativa tiveram dificuldade para lembrar o que escreveram. Entre os que usaram buscadores comuns ou apenas a própria mente, só 11 por cento relataram o mesmo problema. O contraste sugere que terceirizar demais não só altera como pensamos. Altera o que conseguimos reter. O ponto final de Rock não é nostalgia. Ele reconhece que a IA amplia produtividade e que já existe uma distância real entre quem usa bem essas ferramentas e quem ignora seu potencial. A questão é calibragem. Insights, aqueles momentos de 'virada' que fazem uma empresa avançar ou uma ideia nascer, dependem do esforço mental de quem está presente, pensando junto, conectando o novo ao que já sabe. Quando esse esforço é substituído por um atalho, o cérebro entrega menos do que poderia entregar. No fim, a provocação é simples e desconfortável. Em nome da eficiência, o que estamos trocando? Talvez a melhor forma de usar IA seja justamente escolher onde ela entra e onde não deve entrar. Porque há tarefas que a tecnologia otimiza. E há outras em que a mente humana precisa continuar sendo protagonista, não espectadora.